Um retrato assustador dos dois anos subsequentes à tomada do poder pelos bolcheviques constitui Dias malditos, diário do escritor Ivan Búnin (1870-1953), publicado pela CARAMBAIA em sua primeira tradução no Brasil. Não se trata apenas de um relato do caos que se instalou nas ruas de Moscou e Odessa (na atual Ucrânia), as duas locações do diário, mas de um ponto de vista profundamente crítico ao bolchevismo. Em pouco tempo, o autor, que chamou Vladimir Lênin de “bastardo e idiota moral desde o berço”, se exilaria na França.
Considerado um grande estilista, Búnin foi o primeiro escritor russo a ganhar o prêmio Nobel, em 1933. Em Dias malditos, sua escrita poética – que foi comparada por críticos a um bordado – dá lugar a registros marcados pela urgência, num mosaico de notícias de jornais, fatos testemunhados e informações de boca a boca. O tom é de inconformismo. “Está para nascer gente mais vigarista”, desabafa Búnin sobre os bolcheviques. As notícias e rumores são apavorantes: saques, fuzilamentos, massacres de judeus, julgamentos sumários, bebedeiras, escassez de alimentos. Em dado momento, o próprio escritor se vê no meio de um fogo cruzado quando sai para a rua.
Ao caos provocado por revolucionários e comunistas soma-se a guerra civil entre os exércitos vermelho e branco e as escaramuças de alemães e franceses no território russo devido à Primeira Guerra Mundial. Búnin destaca a presença de camponeses nas cidades, ao lado de operários que se comportam, segundo ele, como fanfarrões. Para o escritor, o que estava acontecendo na Rússia era mais grave do que o período do terror pós-Revolução Francesa. “Qual um etnógrafo, o autor nos detalha como o ressentimento – historicamente justificado – foi manipulado para colocar em prática uma desforra apenas aparentemente consciente”, escreve no posfácio a tradutora Márcia Vinha.
Mais do que a repulsa que lhe causam os revolucionários nas ruas, Búnin execra os escritores que aderiram aos novos tempos, como Vladimir Maiakóvski, Aleksandr Blok e Maksim Górki, com quem havia mantido uma forte amizade antes da revolução. Considera-os oportunistas, vaidosos e repletos de boas intenções fingidas. “É horrível dizer, mas é verdade: se não fosse pela pobreza do povo, milhares de intelectuais seriam as pessoas mais infelizes’, escreve.
Dias malditos foi publicado pela primeira vez entre 1926 e 1927, em forma seriada, no jornal Vozrizhdenye, escrito em russo e publicado na França. Na União Soviética, uma versão severamente censurada saiu em meados dos anos 1950, durante a relativa abertura do regime promovida pelo dirigente Nikita Kruschev. Somente em 1989, à beira do fim da URSS, foi lançado na íntegra.
Com mais de quarenta edições em menos de uma década, Dias malditos tem uma influência única na formação política e humanística do pensamento russo atual. Na continuidade de uma tradição marcada por Aleksandr Púchkin, e na contramão do que exigia a literatura soviética e a propaganda política, Búnin retrata o povo russo como anti-herói: tacanho, sem conhecimento da arte ou da história, confundindo opressão política com liberdade e acreditando em falsos profetas.
Visto como um mestre da narrativa curta, Búnin teve sua obra admirada por diversos escritores, de Rilke a Nabokov, e hoje consta no currículo escolar nacional russo. No cinema, Búnin foi retratado como um homem agressivo e beberrão em Dnevnik ego zheny (O diário de sua esposa), dirigido por Aleksey Uchitel e lançado em 2000. Já Dias malditos inspirou em parte o filme Solnechnyy udar (Insolação), de 2014, realizado por Nikita Mikhalkov.