Ensaio, crônica, poesia ou ficção? A escrita de Ana Kiffer não se deixa enclausurar num gênero. Ana não quer definir. É justo o seu contrário. Por isso ela pergunta. Ela escava. Ana está tentando "retirar a pele" diante dos nossos olhos. E quer vestir todas as peles: as peles loucas, desesperadas, violentadas, abandonadas, esquecidas. Ana assume todas as mulheres, todas as formas. Sua escrita é um ato de acolhimento.
Mirna Queiroz
“Este livro é tardio”, diz a narradora de O canto dela. “Este livro é tardio”, poderíamos dizer sobre o primeiro romance de Ana Kiffer, intelectual e escritora com uma trajetória louvável, inventiva, fora da curva. Mas será que existe cedo ou tarde na literatura?
Se há uma certeza, é que aqui os tempos se encontram, os antepassados falam no corpo de seus descendentes. Um corpo nunca é só um corpo. Uma voz nunca é só uma voz. Somos surpreendidos pela não-singularidade de quem fala: Ana assina o livro junto com Marie-Aude Alia, uma francesa de origem africana, nascida em 1936, que viveu no Togo até os 4 anos. Elas falam juntas, e falam na companhia de tantas mulheres, que foram repetidamente violadas e silenciadas.
Ana e Marie-Aude escrevem sobre a dor e a morte de forma pouco comum: olham para elas de frente e delas extraem uma “formidável potência”. Afinal, estão muito mais perto do que imaginamos de outra força que nos arrasta, nos faz rastejar feito “répteis” sobre a terra: o amor.
Dor, morte e amor: eis a tríade que compõe este livro que se escreve num corpo parado, “existindo através do canto, numa língua desconhecida”. O canto dela, o canto de lá, o canto de Alia. O canto de Ana, enfim.
Tatiana Salem Levy
Ana Kiffer começou a escrever aos 6 anos, quando tinha uma de suas vistas tampadas, desde lá nunca deixou de acreditar que a escrita é um caminho de transformação das vidas. Mora no Rio de Janeiro, é professora de Literatura e Cultura na PUC-Rio, vem pesquisando há muitos anos as relações entre os corpos e a escrita, e desde 2016 é colunista da Revista Pessoa, onde escreve mensalmente suas ficções-teóricas. Em 2021 foi curadora convidada da 34 Bienal de Arte de SP, e trouxe para o Brasil cadernos inéditos de Antonin Artaud e Edouard Glissant. Tem dois livros de poemas publicados: Tiráspola e Desaparecimentos (Garupa, 2017) e Todo Mar (Urutau, 2019), além do megamíni A punhalada (7Letras, 2016), e muitos textos em prosa e verso espalhados em diferentes Revistas Literárias. O canto dela é sua estreia como romancista. Ela diz que não vai mais parar.
Marie-Aude Alia nasceu em Lomé, Togo, em 1936, mas cresceu e viveu em Grenoble sem conhecer as suas origens. Foi Maitre des conférences em Literatura Comparada na Université de Grenoble Alpes. Pesquisou, no fim da vida, as relações entre o conceito de Outro e o eurocentrismo, mas nunca publicou a respeito. Autora de um único romance, este, escrito em 1998 e publicado na França neste mesmo ano sob o título La formidable puissance de la douleur. Viveu a parte final de sua vida entre a Normandia e Paris.