O texto que encontramos no caderno da mãe era simples, falava de uma mulher que estava entediada, uma mulher como quase todas as outras do bairro que, de repente, numa epifania, desejava deixar aquilo tudo para trás. Falava em começar o texto, não em acabar. E, no entanto, a única coisa que eu entendia é que, de uma forma ou de outra, ficaria esquecido tudo aquilo que, durante anos, eu havia imaginado sobre a minha mãe. O que existia entre o período em que ela ainda estava com a gente e depois de encontrarmos o caderno. Eu havia lido cada frase, tentado decifrar cada Interjeição, tentava achar um motivo, um destino provável para aquela personagem angustiada. Minha mãe falava, no texto, de uma pessoa que havia começado as tarefas da manhã há pouco. Tomava café da manhã, arrumava a cama, assistia a um dos diversos programas matinais sobre variedades e ia tomar banho até decidir que não queria fazer isso nunca mais. Estava nua, é claro, sentindo a água descer suavemente, no momento em que decidia fugir daquela casa, dos filhos, para colocar seu plano em ação. A fim de ter a coragem necessária para fazer tudo o que planejava, a mulher da narrativa de minha mãe tinha que sair daquele jeito de casa, sem pensar em outra coisa, tinha que deixar tudo exatamente como estava [...]
Rafael de Oliveira Fernandes, nascido em São Paulo, capital, em 1981, formado em Direito pela USP, autor dos livros de poesia “Menino no telhado” e “Cadernos de Espiral” (editora 7letras), e do romance “Vista parcial do Tejo” (editora Patuá).